O que é a Fáscia?
A fáscia é o tecido do nosso corpo que reveste todos os outros e que, por isso, se chama também de tecido conectivo. Esta é, para mim, uma das palavras chave no que respeita a perceber a fáscia: conexão. Todo o nosso corpo está ligado internamente. Imediatamente debaixo da pele sai este tecido que tem o aspeto de uma rede tridimensional, cristalina, que reveste todas as nossas estruturas (órgãos, músculos, ligamentos, nervos, cérebro, vasos sanguíneos, linfáticos..),conferindo-lhes estrutura e proteção. Tudo no nosso corpo é circundado por este tecido, cada célula está em contacto com a fáscia.

“Sem fáscia, o corpo não teria forma, função, nem suporte” (Duncan, 2014).
A fáscia mostra-nos também que o nosso corpo se mantém no seu lugar devido ao equilíbrio de forças de distensão/compressão. Nenhum osso do corpo está totalmente colado a outro, o que faz com que o nosso esqueleto esteja seja suportado pelo equilíbrio de tensão do sistema fascial. Tal como vemos na imagem a seguir, em que os segmentos mais sólidos se mantêm no seu lugar sem contactarem uns com os outros, devido ao equilíbrio de tensão do sistema de suspensão.

Isto é importante para percebermos que, deste modo, quando movimentamos uma parte do corpo, todo o corpo se movimenta. O mesmo acontece internamente. Os micro-movimentos que ocorrem a cada instante no nosso interior têm impacto em todo o corpo, permitindo que tudo circule dentro de nós e sendo fundamentais para os movimentos “macro” (visíveis externamente).
Uma das propriedades da fáscia é a viscoelasticidade, a qual remete para a sua capacidade de alongar e retrair, num meio viscoso, hidratado. Entendemos, assim, que o corpo não é uma estrutura rígida. Mesmo os ossos são revestidos por fáscia e apresentam um certo grau de maleabilidade.
Para além de beber água, o movimento aumenta a hidratação da fáscia, sendo fundamental para garantir o deslizamento entre todas as estruturas e para um corpo saudável.
A fáscia é a parte física e visível do nosso corpo por onde tudo circula, permitindo o fluxo. E o fluxo é o que mantém a vida. O fluxo de ar, de líquido, de energia. Tudo existe porque tudo flui.
O Corpo e as emoções
Um aspeto muito importante que os estudos acerca da fáscia têm permitido demonstrar é a relação entre o nosso corpo e as emoções, os sentimentos ou os pensamentos. A fáscia é um órgão extremamente sensitivo, permitindo esta comunicação entre o cérebro e o resto do corpo. A fáscia é rica em recetores sensitivos que comunicam com o cérebro, e todo o sistema nervoso central, dando-nos capacidade de percecionar o nosso corpo internamente, quer em termos de posicionamento (saber a posição do corpo sem ter de o ver, a que chamamos propriocepção) quer em termos de estado geral (interocepção).
A interocepção remete para a “Consciência da condição corporal baseada em informação que deriva diretamente do próprio corpo” (Bordoni & Marelli, 2017).
Esta capacidade de sentir o próprio corpo é um aspeto fundamental para a saúde. De acordo com Bordoni & Marelli (2017), o sistema miofascial possui uma extensa e apurada inervação, omnipresente e diversificada. A interocepção pode modular a forma como percepcionamos o nosso corpo (representação exteroceptiva do corpo), e também a tolerância à dor.
Deste modo, a presença de um distúrbio no contínuo fascial, durante as atividades e os momentos do dia-a-dia, podem alterar o estado emocional da pessoa, tal como estudos revelam na presença de fibromialgia e outras situações patológicas. Uma disfunção no sistema fascial altera a postura corporal e o estado emocional (Bordoni & Marelli, 2017).
Verbalizamos muitas vezes expressões como “ter o peito apertado” , ou “levar um murro no estômago”, que expressam esta ligação entre o físico e as emoções.
Os órgãos são extremamente receptivos às emoções e sentimentos.
Jean Pierre Barral refere no seu livro “Understanding the messages of your body”: “Normalmente, se incluirmos os cinco sentidos, o cérebro recebe mais de dez biliões de estímulos informativos por segundo. Quando em perigo, juntam-se cem milhões extra. Felizmente, toda esta informação é removida e resolvida por uma estrutura nervosa chamada substância reticulada. Os fenómenos psicossomáticos ocorrem quando os resíduos emocionais se derramam nos nossos órgãos. Dentro de fronteiras aceitáveis, este é um fenómeno que nos ajuda a manter a saúde mental. Fora dessas fronteiras experienciamos dor e desconforto.”
Memória corporal
Outra questão importante relacionada com a fáscia é a sua capacidade de armazenar memória. De acordo com o Editorial “Does Fascia hold memories?” (Tozzi, 2013), muitos terapeutas fasciais já experienciaram em algum momento da sua prática, enquanto trabalham em tecidos disfuncionais no corpo, fenómenos que podem ser interpretados como uma libertação de memórias, existindo já pesquisas modernas que propõem diferentes interpretações de como a memória pode ser armazenada nos tecidos, envolvendo possivelmente outras formas de armazenamento de informação não exclusivamente processadas neurologicamente (ao nível do cérebro, do sistema nervoso).
Reflexão
As posturas repetidas ou mantidas por muito tempo, traumas, doenças ou emoções e sentimentos (que o cérebro descarrega para o corpo) conduzem os tecidos (sejam órgãos, nervos, ligamentos, músculos ou outros) à perda de mobilidade, tornando-se mais aderentes. Todo o corpo se vai ajustar no sentido de compensar essa perda de mobilidade até que, quando o corpo já não consegue compensar, surgem os sintomas.
O dia-a-dia pode trazer-nos imensos fatores geradores de tensão, quer física, quer psico-emocional. Essas tensões resultam em compressões, aderências, restrições de movimento ou estagnação do fluxo, os quais vão gerar desequilíbrios corporais que, com o tempo, podem vir a culminar em disfunção nos sistemas, predisposição para a doença ou para a lesão, patologias ou dor. Precisamos assim encontrar oportunidades que contrabalancem esses estímulos de tensão, trazendo alongamento, espaço, fluidez, leveza ao nosso interior. Para que o corpo se mantenha saudável necessita de uma boa circulação e fluidez.
Andrew Still, considerado o pai da osteopatia, dizia que” a Fáscia é onde a alma habita”. Esta expressão traz-me uma sensação de grande reconhecimento. Quando nos permitimos sentir e escutar o corpo na sua totalidade, contactamos com uma inteligência muito diferente da inteligência lógica. A inteligência do corpo está intimamente ligada às sensações e revela-nos uma capacidade de expressão para lá do que conseguimos analisar. É uma comunicação subtil que nos conecta à perceção da corporalidade em múltiplas dimensões. Essa perceção faz-nos, muitas vezes, suspirar, inspirar profundamente, sorrir, traz-nos um brilho nos olhos, traz-nos, no fundo, uma sensação de gratidão profunda pela beleza de estar vivo.
A arte (dançar, deixar-se ir por uma música, pela escrita, pela pintura, ou qualquer outra forma de criatividade) é um dos meios pelo qual podemos aceder de forma verdadeira a essa expressão e escuta do nosso ser. A criatividade é um portal para a alma. E, para mim, o corpo é um portal para a criatividade.
Se sentimos, dentro de nós, um impulso para fazer mais, para nos encontrarmos connosco próprios, para saber o que viemos cá fazer, abrimos espaço para o contacto consciente com a alma. A alma é o elemento mediador entre o nosso eu-superior (a fonte, o universo) e a nossa psique. É este elemento mediador que nos guia para o alinhamento com o nosso propósito. A fáscia é o elemento mediador entre todos os tecidos e entre todas as dimensões do corpo humano. Na minha visão ambas, fáscia e alma, estão inevitavelmente interligadas.
Conhecer a fáscia permite ampliar a nossa visão no que respeita ao corpo humano. O corpo deixa de ser visto como um conjunto de peças e passa a ser compreendido e sentido como um sistema único. Um sistema fluido e deslizante, intimamente ligado às nossas emoções e pensamentos. Somos resultado da nossa história e ela está escrita em cada célula do nosso corpo, com impressões também da história da nossa família e da história da humanidade. A fáscia é unidade.
Aliar o conhecimento científico e da anatomia humana à escuta dos tecidos, resulta numa intervenção fundamentada e, em simultâneo, guiada pelo próprio corpo, numa manifestação de profundo respeito pelo ser humano. Cada indivíduo é único, cada resposta ao tratamento é única e a abordagem será aquela que o corpo precisa naquele momento, seja mais física, mais emocional, mais energética ou tudo junto.
O corpo é um todo, maior do que a soma das suas partes.
BIBLIOGRAFIA
Barral, J. (2007) Understanding the messages of your body. North Atlantic Books (USA).
Bordoni, B. & Marelli, F. (2017). Emotions in Motion: Myofascial Interoception. Complementary Medicine Research, 24: 110-113.
Duncan, R. (2014). Myofascial Release. Human Kinetics (UK).
Tozzi, P. (2014). Does Fascia Hold Memories. Journal of Bodywork and Movement Therapies, 18: 259-265.